* Por Amadeu Roberto Garrido de Paula
Cremos ser insuspeitos, porquanto já registramos que a história do gênero humano foi escrita pela metade: a história masculina. Entretanto, homem é vocábulo que carrega ambos os significados, de gênero e de espécie. Nada contra. Todos entendem quando nos referimos ao homem como humanidade e ao homem como ser masculino. Um neologismo como feminícidio em nada auxilia a nobre luta das mulheres. Simplesmente a demoralizam face aos interessados em desmoralizá-la.
Os atos criminosos estão descritos pelo Código Penal, não tão obsoleto como se imagina porque emendado de cabo a rabo. Outro é necessário, mas por simples higiene jurídica. O direito e, principalmente, o direito penal, não pode conviver com leis de palavras desnecessárias ou imprecisas, até porque a primeira das interpretações é a literal (da letra). No caso acaso, correntio, de palavras imprecisas ou mal empregadas na lei, os juristas são obrigados a recorrer aos demais métodos de interpretação (hermenêutica), o que torna a realização do direito mais complexa, quando o ideal jurídico, como pregava Beccaria e outros ilustres cientistas do direito, está no contrário, é dizer, na simplicidade.
O direito penal sempre conviveu com suas duas únicas expressões literais de crimes contra a vida: o homicídio (procedimento que provoca a morte de qualquer pessoa) e o infanticídio, que não é o crime contra a vida de uma criança, conforme se diz de modo impensado, mas a morte do filho pela própria mãe em estado puerperal, concomitantemente ou imediatamente seguinte ao parto. Infelizmente, homicídios no Brasil acontecem a todo momento, mas infanticídios são raros. O direito penal, a bem da ciência jurídica e sua objetividade, não pode ter sua descrição dos crimes contra a vida inflacionada por neologismos, o que seria um insulto à nossa língua e o tornaria complexo e maltratado em seu objeto.
Jamais foi necessário o emprego do termo “feminicídio”, que nenhum dicionário registra, para que os homicidas de mulheres forem punidos, na forma da lei. Se esta é benevolente em relação aos mencionados crimes, certamente isso não se deve às palavras contidas no Código Penal. E sua mudança, sem mudança da lei, em nada auxilia o justo movimento das mulheres, soh uma perspectiva geral.
Isso, antes de dizer que ficamos arrepiados quando nossa língua é vilipendiada. Linguagem é algo muito sério, que permitiu a vida em sociedade, a comunicação necessária e correta, a existência da vida humana globalmente organizada. Neologismos são admissíveis, quando o vocábulo foi amadurecido nos seios dos costumes populares, como “feminismo”.
Os ataques à língua, sobretudo por ideólogos, que imaginam que ela seja responsável por agravos políticos que combatem, causam-me estremecimentos. No ponto não poderíamos deixar de procurar Fernando Pessoa, em sua obra prima, “O Livro do Desassossego”, quando pronuncia, ancorado na autoridade de um dos maiores poetas da língua portuguesa:
“Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho – transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta os outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar minha vida em todas as veias… Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida…Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar… Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que me não incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como um escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”
Dê-se ao poeta, de barato, o excesso do politicamente incorreto. Transportando-se essas machucaduras, presentes, inclusive, em livros oficiais, escolares, “ao bem democrático dos excluídos”, à realidade biológica, tais invenções “geniais” à linguagem, neste caso, equivalem a um corpo sujo. De machos e fêmeas.
Amadeu Roberto Garrido de Paula é advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.