Com acesso à educação assegurado na Constituição Federal e em várias leis, muitas crianças com deficiência e suas famílias sofrem para conseguir usufruir desse direito primário. As dificuldades vão desde o acesso, com barreira na hora de fazer a matrícula, até a permanência, com a falta da assistência necessária a cada criança.
De acordo com o Ministério Público de Rondônia (MP-RO), apenas em 2019 foram mais de 120 denúncias de mães sobre dificuldades enfrentadas no acesso dos filhos ao ensino regular.
De acordo com a promotora responsável pela área em Porto Velho, Priscila Matzenbacher Tibes Machado, a maior parte das denúncias é relacionada a escolas particulares. Os motivos da criação de barreiras nessas escolas são variados e passam pela questão econômica, falta de fiscalização do poder público até o preconceito dos pais das crianças sem deficiência.
“As escolas, em geral, negam dizendo que não têm condições de atender. E nos casos mais dissimulados, querem colocar que não é interessante para a criança. Que seria mais interessante buscar uma escola que já tenha estrutura. Mas a maior parte das negativas é direta e não dissimulada. Isso causa dor”, explica Priscila.
A promotora explica que normas como o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Convenção da ONU Nova York (internalizada com equivalência de emenda constitucional) preveem que a criança com deficiência possa estudar junto às demais em uma escola regular e receber o tratamento inclusivo.
“Quando a gente trata de educação inclusiva, não é só de empatia que a gente fala, porque empatia é um sentimento, muito associado a moral e a moral não é normatizada. O que é normatizado é o Direito e o Direito trata especificamente da educação inclusiva”, comenta.
A legislação vigente garante todo o suporte necessário ao desenvolvimento da criança no ambiente escolar, incluindo um professor mediador e profissional de apoio, quando for o caso. Todo o atendimento deve estar incluído na mensalidade comum cobrada aos estudantes da mesma série na escola privada. “A escola não pode acrescentar R$ 1 [na mensalidade] em razão disso. Ela tem que disponibilizar”, orienta.
Na promotoria da capital, Priscila explica que não tem denúncias de escolas que cobram mensalidade diferenciada, mas de instituições que não disponibilizam o profissional, obrigando o pai a custear o salário e direitos trabalhistas dessa pessoa, que, em muitos casos, não tem a formação adequada. A promotora lembra que a prática é ilegal porque a escola, nestes casos, não verifica os requisitos técnicos destes profissionais.
Coletivo Mães Coragem – Indesistíveis
A assistente social Flaviana Tertuliana é mãe de dois filhos com deficiência. Lucas, de 19 anos, que tem paralisia cerebral e Maria clara, com 17, que tem Síndrome de Down. Com base na luta pessoal pelo respeito aos filhos, ela decidiu criar há quatro anos o grupo “Mães Coragem – Indesistíveis”, que atualmente reúne em todo o estado mais de 400 responsáveis por pessoas com deficiência, doenças raras e altas habilidades.
“O objetivo principal do grupo era resgatar a mulher que tem dentro dessa mãe, que esqueceu de ser mulher para ser apenas a mãe atípica. Ao passar de alguns anos a gente percebeu que não adiantava só tentar resgatar essa mãe, mas a gente teria que correr atrás do direito dos nossos filhos porque elas só se sentiriam bem se esses direitos tivessem sido garantidos. A mãe só fica bem a partir do momento que os filhos estiverem bem”, explica a assistente social.
Flaviana recorda que a filha passou por várias escolas particulares, sempre enfrentando dificuldades de aceitação por parte das instituições, que não queriam arcar com a educação especializada.
“A principal barreira da educação é o medo que a escola tem de aceitar a criança com deficiência porque ainda não ficou bem claro que educação inclusiva não é só chegar lá e colocar os nossos filhos na escola, não é só a matrícula. É um processo de desenvolvimento onde os profissionais tem que buscar nos nossos filhos o que eles têm de melhor. Para isso, é preciso um quadro de profissionais que infelizmente as escolas não têm e as escolas não querem ter esse gasto maior”, lamenta.
Segundo a líder do grupo, o tempo que a criança perde sem a atenção escolar devida pode ser irreversível, já que a infância é a fase de maior estimulação e desenvolvimento, que poderiam diminuir as limitações da deficiência.
“Isso gera as vezes uma frustração tão grande que a família passa a não querer que o filho faça parte da escola regular, mas o ideal é que essas crianças cresçam junto com as outras, gerando cidadania, conhecimento, sabendo que o deficiente é capaz de chegar”, diz.
A assistente social revela que algumas mães do grupo começaram a ter depressão, síndrome do pânico e até pensamentos suicidas por conta das humilhações na busca pelos direitos do filhos. “Tem escolas que ainda acham que autismo é birra, malcriação”, desabafa.
O principal meio encontrada pelas mães do grupo para garantir as matrículas em escolas particulares é o Ministério Público. Normalmente, após as denúncias, são enviados ofícios e as escolas, para evitar processos na Justiça, acabam matriculando as crianças.
“Quando você vai lá, eles dizem que tem vaga, aí você diz que seu filho tem uma deficiência, eles dizem que não podem, não tem condição de aceitar. Se a mãe diz que o filho precisa de um profissional [de apoio] eles já querem colocar a mais. É impossível a gente garantir o direito do nossos filhos na rede pública ou particular sem a intervenção do MP. As escolas sabem que é lei, mas acham que não têm obrigação de fazer. E é por isso que são poucas mães que procuram na rede particular”, diz Tertuliana.
Muitos são os relatos de discriminação de Flaviana e das colegas de grupo. Em uma das situações, ela lembra que descobriu que o material da filha não era usado e ouviu da diretora que era melhor guardá-lo e economizar no próximo ano, já que, nas palavras dela, a menina não se desenvolveria para usar.
“Já fui pra reunião de escola privada onde todos os pais recebiam os trabalhos dos filhos e aí eu perguntei porque a Maria Clara não recebia e a professora dizia 'não tem como trabalhar com ela. Eu não consigo, ela não me entende'”, conta.
Além da questão de sustentabilidade financeira alegada pelas escolas, de forma velada há ainda o preconceito dos pais das crianças que não têm deficiência.
“Já fui pra reunião em que os pais diziam 'meus filhos não vão estudar com criança retardada, essa menina não vai ajudar em nada'. Isso é o que fere, que machuca e que marca”, diz emocionada.
“Acham que uma criança com deficiência na sala de aula do seu filho vai tomar a professora pra si. É egoísta. Por causa do meu filho eu vou impedir o do outro? Vamos lutar pra que o outro também tenha a melhoria e ninguém perca nada”, complementa Matzenbacher.
Hoje Maria Clara estuda em uma escola estadual, após intervenção do MP para garantir o profissional de apoio (cuidador). A mãe comemora o desenvolvimento da filha. “Mesmo ela não sendo alfabetizada, mas todo dia a Maria Clara chega em casa com uma novidade, ela está aprendendo, já tem ciclo de amizades, está se comportando como adolescente pelo convívio na escola. É isso que a gente quer. A gente não quer privilégios, a gente só quer que eles estejam fazendo parte do que é direito deles”, conclui.
Termo de Ajustamento de Conduta
Priscila conta que ao assumir a promotoria em Porto Velho e tomar conhecimento das normas locais, descobriu que menos de 60% das escolas da capital estão regularizadas junto ao Conselho Municipal de Educação, que fiscaliza a educação infantil.
Segundo Priscila, a intenção é que já em 2020 esses pais encontrem uma nova realidade quando buscarem educação inclusiva para os filhos.
“A meta do nosso trabalho é que ano que vem todas as escolas sejam credenciadas com a avaliação de adequação ou não em termos de educação inclusiva”.
Entre os resultados já alcançados com o trabalho da promotora está a revisão de normas do Conselho Municipal de Educação para garantir que escolas só funcionem com o credenciamento e que essa autorização só seja concedida se a escola apresentar condições de promover a educação inclusiva.
Ela também questionou e conseguiu retirar a exigência de laudo individual de todas as crianças com deficiência na matrícula. “Isso burocratiza, encarece e dificulta o acesso à educação”, aponta.
“Quando a gente trabalha para resolver o individual, você permite que sempre tenha situações individuais e é por isso que eu estou atacando lá na base de credenciamento. A raiz do problema é que as escolas não praticam educação inclusiva. Se tiver que fechar, tem que fechar a escola [que estiver irregular]”, declarou.
Em novembro, a promotoria vai organizar um evento com representantes de todas as escolas de Porto Velho e vai propor que as que atuam de forma irregular assinem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) se comprometendo a realizar as adequações necessárias. “Eu entendo que o Ministério Público sempre tem que esgotar as esferas administrativas para atuar de forma mais pesada. Se esse trabalho dos conselhos não der resultado, aí eu vou entrar com penalização”, conclui.