Decorridos mais de quatro décadas de exercício da advocacia, concluo que nosso patrono não é Santo Ivo, mas Harry Potter, os Mugger (trouxas), humanoides não mágicos, um garoto que usa óculos e tem cabelos pretos, Gandalf e o Senhor dos Anéis e o Mágico de Oz.
As leis são ficções, que auxiliam o homem a viver e aplacam a consciência de advogados, promotores e juízes desembarcados no mundo das bruxarias. Tomo o Brasil como exemplo, mas o fenômeno, mais ou menos próximo dos quiosques negros das florestas frias, com a fumaça oriunda da preparação de suas poções a sair de suas chaminés, é universal.
Vejamos o mundo imagístico. Não dizemos que não é útil à nossa sobrevivência. Ver o real profundo cega tanto quanto olhar fixamente para os raios solares. Ou para a morte.
Primeiro, os princípios clássicos do direito. “Honeste Vivere”. A maioria dos “mugger” brasileiros não o conseguem. Sobrevivem, com o auxílio de muitos momentos de desonestidade necessária. “Sum cuique tribuere”, quando a floresta só entrega as frutas mais doces a quem primeiro apanhá-las. “Alterum non laedere”, são incomuns os que conseguiram sobreviver sem, pelo menos uma vez na vida, lesar outrem.
Começada a ópera, a O Estado Democrático de Direito. Democracia que nos espinha a partir dos primeiros raios da manhã. Nos ônibus superlotados. Nos cárceres indomados. Nos pãezinhos fofos. Em alguns e raros, vistosos componentes do café da manhã, amanhã letais. Na reiterada propaganda enganosa. Nas calçadas públicas voltadas a torcer nossos tornozelos. Nas correrias abomináveis para reverenciar o Deus da Modernidade – o relógio de ponto. No trânsito física e psiquicamente traumático.
A Constituição, de 1988. Com seu pomposo preâmbulo e anéis coloridos. Não poderia deixar de começar com um vitupério: “nós, representantes do povo brasileiro” (“sic”). Vimos aqui para “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,… sob a proteção de Deus”. Verborrágica floresta encantada, à qual, por si só, os “mugger” não podem adentrar por ação judicial, a ser julgada em longo, longo tempo, salvo se apoiada em outro preceito ou princípio, um dispositivo esplendoroso e notável , visível mais à frente, segundo recente decisão da Corte Suprema. E Deus, coitado, nada tem a ver com esse conjunto de mentiras.
Segue-se na lei maior: dignidade da pessoa humana, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, todo poder emanado do povo, ou não (se considerarmos a vontade dos milhões em sua praça em tempos recentes), sociedade livre, justa e solidária, desenvolvimento da nação, erradicação da pobreza e das desigualdades, promoção do bem comum sem discriminações. Seguem-se o conhecido art. 5º, que trata das liberdades e garantias, e do art. 7º, dos direitos positivos dos trabalhadores, sempre chantageados por desvalores que mais alto se alevantam. Não precisamos comprovar a negação de tudo isso, se é notório.
O ponto nodal está em que não temos direito processual e jurisdição para implementar esses bons desejos, no deserto de nossas miragens. Ações judiciais corriqueiras já são decenais. Juízes descomprometidos com seu povo, de bem com a vida, enquanto “la nave vá”. E outros abnegados, estressados, preocupados com o fracasso dos processos, como o advogado autor destas linhas. Nós últimos integramos, também, a leva dos “mugger”.
Talvez o viver na crença de um mundo fantástico tenha sua valia. Principalmente, um povo sempre embalado pela fé. Somos “trouxas”, porém esperançosos da realização das promessas. Talvez um dia as bruxas se transformem em fadas. Se pararmos de nos iludir com governos, de qualquer espécie. Enquanto isso, ganhamos forças imaginando-nos senhores dos anéis.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, é Advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.